16 de Abril
Corria o ano de 303 D.C.
Oteomero, de uma distinta família romana tinha sido governador de Braga e era actualmente Senador, gozava da sua alta posição e da sua imensa fortuna. Tinha uma única filha, Engrácia, que era formosíssima. Mas tão singela e tão modesta, fugindo do luxo e dos divertimentos pagãos que seu pai andava preocupado querendo adivinhar a razão de Engrácia não se parecer com as raparigas da sua posição. Pensava no casamento da sua filha, via nela o futuro da sua casa e resolveu mandá-la à Gália, preparando-lhe ali o enlace com um jovem general romano. Mas como são diferentes os caminhos de Deus...
Numa tarde de Outono, o pai e a filha encontravam-se passeando nos magníficos jardins do palácio, a atmosfera estava impregnada do perfume das flores e os cachos maduros penduravam-se nas grades de bronze dourado. Oteomero sentou-se junto de uma fonte e chamando a filha começou a falar-lhe no assunto que tanto o interessava. Sentia-se velho, e não queria morrer sem deixar um herdeiro à sua casa, mas... a resposta de Engrácia admirou-o.
– Minha filha a tua linguagem é a dos cristãos escravos de uma cruel divindade à qual sacrificam tudo.
– Não meu pai, o Deus dos cristãos não é um tirano, é um salvador amabilíssimo que morreu na cruz para salvar os homens, feitos à sua imagem e semelhança, quando pecam, estende-lhes os braços oferecendo-lhes a sua misericórdia e ensinando-lhes o arrependimento, como compará-los aos vossos Deuses?
Oteomero estava indignado com aquela linguagem, mas não querendo afligir a filha que era todo o seu enlevo, disse-lhe:
– Engrácia, sê condescendente com o teu pai. Conheci em Barcelona, Endonte, general romano de uma família distintíssima, ligado à nossa, tem a simpatia do Imperador e está comandando as legiões romanas na fronteira da Gália, é esse jovem que te escolhi para esposo.
Engrácia baixou a cabeça, e humildemente mas firme, respondeu:
– Desposar-me eu? Nunca meu pai!
Oteomero tapando o rosto com as mãos exclamou:
– A minha única filha, a alegria dos meus últimos dias destrói com uma palavra todas as minhas ilusões!
– Pai, se eu pudesse satisfazer os teus desejos, mas... há um sentimento mais alto que me conduz. Não posso aceitar o esposo que me destinais.
Oteomero cheio de esperança diz-lhe:
– Filha, se é outro o teu escolhido diz-me o seu nome, não tardarei em lhe abrir os braços.
Então, Engrácia transfigurada exclamou:
– O meu esposo é Jesus-Cristo, eu sou cristã!
– Infeliz!!! – rugiu Oteomero empurrando a filha e desapareceu.
A noite desceu sobre o palácio do velho Senador, e pensamentos terríveis o agitaram... «Se chega aos ouvidos do Imperador a decisão da minha filha a que martírios, ela está exposta!». Tudo lhe parecia um sonho – «Quem revelaria a Engrácia essa doutrina?». Fora de si, mandou chamar o cunhado.
– Sabes a nossa desgraça? Engrácia é cristã!
Este por sua vez calava-se e depois de muito instado, confessou: – Também eu sou cristão pela graça de Deus. Foi uma pobre escrava, pobre para o mundo, mas rica aos olhos de Deus, quem me converteu a mim e à tua filha.
Passou tempo, mas Oteomero não desistiu, e na Primavera acompanhada de um brilhante séquito, partia Engrácia para Saragoça. Uma visão do futuro tinha feito a Santa Mártir exultar de alegria, mas deixar o pai tão velho e pagão fazia-lhe sangrar o coração. Na véspera de partir, reunira num dos seus aposentos, transformado em oratório, todos os escravos cristãos, suplicando fervorosamente a Deus a conversão de Oteomero. Nisto, o velho Senador que escondido tudo tinha observado, entrou e exclamou abraçando a filha: – Grande é o vosso Deus, pois uma jovem humilde e tímida como Engrácia, pôde levantar-lhe em minha casa um altar, e reunir aqui os meus melhores escravos. Não sabia que o meu palácio estava cheio de cristãos. Se o vosso Deus é poderoso como dizeis, ele dissipará as minhas trevas e se resistirdes às perseguições de que são vítimas os discípulos de Cristo, também eu abraçarei a vossa fé!
Saragoça, cidade privilegiada de Maria. Conta Maria de Agreda, na Mística Cidade de Deus, o que se segue.
Estava S. Tiago Apóstolo pregando em Saragoça, quando um dia lhe apareceu Nossa Senhora rodeada de uma multidão de Anjos que traziam uma coluna de mármore ou jaspe e uma pequena estátua da Mãe de Deus. Nossa Senhora ordenou aos anjos que colocassem a sua estátua sobre a coluna e a pusessem no sítio onde ainda hoje está. Disse a S. Tiago que queria ali um templo em sua honra, onde ficaria a coluna e a sua imagem até ao fim do mundo, e que protegeria a Espanha!
A primeira visita de Engrácia em Saragoça foi a Nossa Senhora do Pilar. A sua entrada na cidade não passou despercebida, devido à sua formosura e ao brilhante séquito que a acompanhava.
Reinava Diocleciano, e uma nova era de perseguições, ia começar. Daciano, perfeito romano chegava a Saragoça para lhe dar início. Acompanhava-o Endonte, general romano, noivo que Oteomero destinava a sua filha. Era um belo moço e sabendo pelo pai da chegada de Engrácia a Saragoça, queria vê-la. No seu orgulho, não duvidou um instante do consentimento dela e convidou para a boda os seus amigos. Fascinado com a formosura da Lusitana, pediu a sua mão, sabendo ser essa a vontade de Oteomero. Mas ela dirigindo-lhe palavras que ele como pagão não podia compreender, acabou dizendo: – Nunca aceitarei um esposo humano.
– Mas para quê viestes então a Saragoça?
– Para cumprir a vontade de Deus – respondeu Engrácia.
O general cheio de orgulho e cólera quis replicar, mas a Santa mostrando-lhe a saída retirou-se, dizendo-lhe: – Endonte, Deus te perdoe e ilumine!
A perseguição desencadeou-se terrível. Daciano queria saber o número e o asilo dos cristãos. Procurou o general romano e disse-lhe: – O édito vai ser afixado esta noite, os altares estão prontos para os sacrifícios, espero uma boa presa, uma mulher, uma estrangeira a quem ninguém ousa prender, mas que em breve estará em meu poder. Conhece-la? É aparentada com a nossa família.
– Seja o que for – respondeu Endonte com dureza. – Se é cristã tem de morrer!
Engrácia não aparecia, não chegara ainda o dia da vitória.
Depois de buscas infrutíferas, espalhou-se que os cristãos se tinham refugiado na Igreja do Pilar. Endonte juntou as suas tropas e avançou para o templo, mas à porta estacou; supersticioso e cobarde, receou entrar no templo de Maria. Vendo que as suas tropas se recusavam também, mandou rodear a Igreja de matérias inflamáveis e deitar‑lhe fogo. Mas... o poder incomparável de Nossa Senhora, ardeu tudo, mas o templo ficou intacto. Depois de muitas pesquisas, Endonte conseguiu entrar nas catacumbas, junto ao Èbro, era ali que se reuniam os cristãos; para isso seguiu uma piedosa mulher conhecida de sua irmã Marcela, esta também já cristã de desejo. Endonte seguiu, os cristãos estavam em oração. Imediatamente se ouviu o tilintar das armas dos soldados romanos que entravam à ordem de Endonte.
– Quem procuras?
– Engrácia.
E a Santa Virgem, que mais parecia um anjo que uma criatura, esperando salvar os seus irmãos, avançou dizendo com um santo orgulho: – Sou eu!
Os cristãos foram massacrados e a Virgem lusitana levada em ferros para a prisão. Levantou-se o tribunal na praça pública de Saragoça e Engrácia foi conduzida à presença do perfeito romano. Á sua entrada houve um sussurro na multidão.
– És cristã? – perguntou Daciano.
– Tenho essa imensa ventura.
– Teu pai educou-te no culto dos Deuses?
– Eu só adoro o verdadeiro Deus.
– Estás noiva de um ilustre general romano?
– O meu único esposo é Jesus Cristo.
– Sabes que tenho o poder de te fazer sofrer as maiores torturas? Sacrifica aos nossos Deuses!
– Jesus Cristo é o defensor das virgens, nunca adorei aos vossos Deuses, só adoro Jesus Cristo, filho de Deus, criador de todas as coisas.
Nisto, ouve-se um clamor imenso sair da multidão. – Ao fogo, ao fogo com a lusitana!!!
Daciano mandou-a reconduzir à prisão, dizendo que ele mesmo, escolheria os suplícios que ela devia sofrer.
Engrácia, como o divino esposo foi presa a uma coluna e cruelmente açoitada; em seguida amarrada a dois fogosos cavalos numa corrida vertiginosa, desconjuntaram, rasgaram o corpo da Santa Virgem; era uma chaga, mas levaram-na ao cárcere ainda com vida. Nos seus lábios via-se um sorriso celestial, e quando piedosas mulheres entraram na prisão, acharam-na em extasies, voltando a si disse-lhes: – Porque choram? Se é hoje o dia mais feliz da minha vida, o corpo sofre, mas a alma goza, porque tem o penhor da vida eterna. Ah! O Céu! Se soubésseis o que é o Céu!!!!
O Bispo indo visitá-la, quis dar-lhe ânimo com estas palavras: – Feliz minha filha, derramastes o vosso sangue por Jesus Cristo.
– Ainda não – respondeu ela. – O meu divino esposo disse-me que tenho martírios mais atrozes a sofrer, tenho almas a salvar e não há redenção sem sacrifícios.
Daciano, instrumento do inferno preparava novos suplícios, entraram no cárcere cinco algozes que mais uma vez quiseram obrigar Engrácia a sacrificar aos Deuses, mas inutilmente. Estenderam a Santa Mártir no chão, pés e mãos presos em argolas de ferro, metidas nas paredes, e arrancando-lhe o fato colado às chagas, rasgaram-lhe o corpo com pentes e unhas de ferro, tirando-lhe parte do fígado. Engrácia pronunciava os nomes de Jesus e Maria. Neste momento entra na prisão Daciano, enraivecido com a constância de Engrácia, exclama: – Por toda a parte os cristãos, como exterminá-los? Talvez os carcereiros o sejam também! – e vendo a Santa Virgem ainda com vida, tenta ele mesmo acaba-la pela última vez. Engrácia por sinais recusou; mandou anda cortar‑lhe o peito do lado do coração, a mártir caiu para cima do algoz mas não morreu, Deus conservava-lhe a vida milagrosamente.
Então, Daciano, cheio de terror e raiva disse: – É preciso acabar coma lusitana! – e mandou vir um prego e martelo, o fez entrar na testa de Engrácia que a seguir expirou!
Querendo mais vítimas, mandou ali mesmo degolar Marcela, irmã do general romano, um triunfo de Engrácia que com o seu martírio tinha alcançado a Deus a conversão da jovem romana e de seu pai Oteomero, martirizado em Braga.
Passava-se isto a 16 de Abril.
Daciano convenceu-se que os cristãos se atemorizassem com os suplícios de Engrácia. Os mártires de Saragoça contam-se aos milhares. Os cristãos puderam enterrar o cadáver da Santa Mártir nas catacumbas, e nesse momento viram anjos revestidos de dalmáticas encarnadas, encessando com turibulos de ouro; as catacumbas iluminaram-se maravilhosamente e coros angélicos entoaram cânticos harmoniosos. Passados dias o general romano adoeceu gravemente e sentindo-se morrer, arrastou-se até ao túmulo de Engrácia e de Marcela. O Bispo Valero que vinha orar junto das Santas Mártires, reconheceu-o e vendo-o moribundo, perguntou-lhe: – Que queres? O baptismo? – respondeu Endonte: – O sangue da minha irmã Marcela caiu nos meus olhos e a minha alma abriu-se à verdade.
Depois de baptizado, voltando-se para o túmulo das Santas Virgens, exclamou:
– Elas me abriram o Céu! Meu Deus, que excesso de misericórdia e de amor.